Aquarelas
Texto-fonte:
Obra Completa, Machado de Assis,
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, V.III, 1994.
Publicado originalmente
I
OS
FANQUEIROS LITERÁRIOS
Não é isto uma sátira
A fancaria literária é a pior
de todas as fancarias. É a obra grossa, por vezes mofada, que se acomoda à ondulação das espáduas
do paciente freguês. Há de tudo nessa loja manufatora do talento — apesar da raridade da tela
fina; e as vaidades sociais mais exigentes podem vazar-se, segundo as suas aspirações, em uma ode ou discurso parvamente retumbantes.
A fancaria literária poderá
perder pela elegância suspeita da roupa feita, mas nunca pela exigüidade dos gêneros.
Tomando a tabuleta
por base do silogismo comercial é infalível chegar logo à proposição menor, que é a
prateleira guapamente atacada a fazer cobiça
às modéstias mais insuspeitas.
É lindo comércio. Desde José Daniel, o
apóstolo da classe — esse modo de vida tem
alargado a sua esfera — e, por mal de pecados, não promete ficar aqui.
O fanqueiro literário é um tipo curioso.
Falei
A audácia ia mais
longe. Não contente de suas especulações pouco airosas, levava
o atrevimento a ponto de satirizar os próprios fregueses — como em
uma obra em que embarcava, diz ele, os tolos de Lisboa,
para uma certa ilha; a ilha era, nem mais nem menos, a algibeira do poeta. É positiva a aplicação.
Os fanqueiros modernos não vão à feira;
é um pudor. Mas que de compensações! Não se prepara
hoje o folheto de aplicação moral contra os costumes. A vereda é outra;
exploram-se as folhinhas e os pregões
matrimoniais e as odes deste natalício ou daqueles desposórios. Nos desposórios
é então um perigo; os noivos tropeçam no
intempestivo de uma rocha tarpéia antes mesmo de entrar no Capitólio.
Desposório, natalício ou batizado, todos esses
marcos da vida são pretextos de inspiração
às musas fanqueiras. É um eterno gênesis a referver por todas
aquelas almas (almas!) recendentes de zuarte.
Entretanto, esta calamidade
literária não é tão dura para uma parte da sociedade. Há quem se julgue motivo de cuidados
no Pindo — assim
como pretensões a semideus da antiguidade; é um soneto ou uma alocução recheadinha de
divagações
acerca do gênesis de uma raça — sempre eriça os colarinhos a certas
vaidades que por aí pululam — sem tom nem som.
Mas entretanto —
fatalidade! — por muito consistentes que sejam essas ilusões, caem sempre diante das
conseqüências pecuniárias; o fanqueiro
literário justifica plenamente o verso do poeta: não arma do louvor, arma do dinheiro. O entusiasmo da ode mede-o ele
pelas possibilidades econômicas do elogiado. Os banqueiros são então os
arquétipos da virtude sobre a terra;
tese difícil de provar.
Querendo imitar os espíritos sérios, lembra-se ele de colecionar os seus disparates, e ei-lo que vai de carrinho e almanaques na mão — em busca de notabilidades sociais. Ninguém se nega a um homem que lhe sobe as escadas convenientemente vestido, e discurso na ponta dos lábios. Chovem-lhe assim as assinaturas. O livrinho é prontificado e sai a lume. A teoria do embarcamento dos tolos é então posta em execução; os nomes das vítimas subscritoras vêm sempre em ar de escárnio no pelourinho de uma lista-epílogo. É, sobre queda, coice.
Mas tudo isso é causado pela
falta sensível de uma inquisição literária! Que espetáculo não seria ver evaporar-se em uma fogueira inquisitorial
tanto ópio encadernado que por aí anda enchendo as livrarias!
Acontece com o talento o mesmo
que acontece com as estrelas. O poeta canta, endeusa, namora esses pregos de diamante
do dossel azul que nos cerca o
planeta; mas lá vem o astrônomo que diz muito friamente:
— Nada! isto que parece flores debruçadas em mar anilado, ou anjos esquecidos no transparente de uma
camada etérea, — são simples globos
luminosos e parecem-se tanto com flores, como vinho com água.
Até aqui as massas
tinham o talento como uma faculdade caprichosa, operando ao
impulso da inspiração, santa sobretudo em todo o seu poder moral.
Mas cá as espera o
fanqueiro. Nada! o talento é uma simples máquina em que não
falta o menor parafuso, e que se move ao impulso de uma válvula onipotente.
É de desesperar de todas as ilusões!
Em Paris, onde esta classe é numerosa,
há uma especialidade que ataca o teatro. Reúnem-se meia dúzia em um café e aí
vão eles de colaboração alinhavar o seu vaudeville quotidiano. A esses milagres de
faculdade produtiva se devem tantas banalidades que por lá rolam no meio
de tanto e tão fino espírito.
Aqui o fanqueiro
não tem por ora lugar certo. Divaga como a abelha de flor em
flor em busca de seu mel e quase sempre, mal ou bem, vai tirando suculento resultado.
Conhece-se o fanqueiro literário entre muitas cabeças pela extrema cortesia. É um tique. Não há homem de cabeça mais móbil, e espinha dorsal mais flexível; cumprimentar para ele é um preceito eterno; e ei-lo que o faz à direita e à esquerda; e, coisa natural! sempre lhe cai um freguês nessas cortesias.
O fanqueiro literário tem em si o
termômetro das suas alterações financeiras;
é a elegância das roupas. Ele vive e trabalha para comer bem e ostentar. Bolsa florescente, ei-lo dândi
apavoneado — mas sem vaidade; lá
protesta o chapéu contra uma asserção que se lhe possa fazer nesse
sentido.
A Buffon escapou
esse animal interessante; nem Cuvier lhe encontrou osso ou fibra perdidos em terra
antediluviana. Por mim, que não faço mais
que reproduzir em aquarelas as formas grotescas e sui generis do tipo, deixo ao leitor curioso essa enfadonha investigação.
Uma última palavra.
O fanqueiro
literário é uma individualidade social e marca uma das aberrações dos
tempos modernos. Esse moer contínuo do espírito, que faz da inteligência uma
fábrica de Manchester, repugna à natureza da própria intelectualidade. Fazer do talento uma
máquina, e uma
máquina de obra grossa, movida pelas probabilidades financeiras do resultado, é perder a dignidade do talento, e o pudor da consciência.
Procurem os caracteres sérios abafar
esse estado no estado que compromete a sua posição e o seu futuro.
II
O PARASITA
I
Sabem de uma certa erva, que desdenha a
terra para enroscar-se, identificar-se com as altas árvores? É a parasita.
Ora, a sociedade, que tem mais de uma afinidade
com as florestas, não podia deixar de ter em
si uma porção, ainda que pequena de parasitas.
Pois tem, e tão perfeita, tão igual, que nem mesmo mudou de nome.
É uma longa e
curiosa família, a dos parasitas sociais; e fora difícil assinalar
na estreita esfera das aquarelas — uma relação sinótica das diferentes
variedades do tipo. Antes sobre a torre, agarro apenas na passagem
as mais salientes e não vou mergulhar-me no fundo e em todos os recantos do oceano
social.
Há, como disse, diferentes espécies de
parasitas.
O mais vulgar e o
mais conhecido é o da mesa; mas há-os também em literatura, em
política e na igreja. É
praga antiga, e raça cuja origem se prende à noite dos tempos, como diria qualquer
historiador en herbe. Da
Índia, essa avó das nações, como diz um escritor moderno, são poucas as noções a respeito; e não posso marcar aqui com precisão o desenvolvimento dessa casta curiosa
no velho país. Em Roma, onde lemos
como num livro, já Horácio comia as sopas de Mecenas, e banqueteava alegremente no triclinium. É verdade que lhe pagava em longa
poesia; mas, nesse tempo, como ainda hoje,
a poesia não era ouro em pó, e este é grande estrofe de todos os tempos.
Mas, tréguas à historia.
Tenho aqui como alvo esboçar em traços
ligeiros as formas mais proeminentes da
individualidade; entremos pois no estudo — sem mais preâmbulo.
Devo começar pelo
parasita da mesa, o mais vulgar? Há talvez pouco a dizer — mas esse pouco mesmo
revela altamente os traços arrojados desta fisionomia social.
Debalde se procuraria
conhecer as regiões mais adaptadas à economia vital deste
animal perigoso. Inútil. Ele vive por toda parte em que há ambiente de porco assado.
Também é aí onde ele desenvolve melhor
todas as suas faculdades; — onde se sente a son
aise, como diria qualquer label encadernado em paletó de inverno.
Perfeito parasita
deve ser perfeito gastrônomo; mesmo quando não goze esta faculdade por vocação
do berço, é um resultado da prática,
pela razão de que o uso do cachimbo faz a boca torta.
Assim,
o parasita jubilado, o bom parasita, está muito acima dos outros animais.
Olfato delicado, adivinha a duas léguas de distância a qualidade de um bom prato; paladar
suscetível, — sabe absorver com todas as regras de arte — e não educa o seu estômago
como qualquer
aldeão.
E
como não ser assim, se ele não tem outro cuidado nesta vida? e se os limites da
mesa redonda são os horizontes das suas aspirações?
É curioso vê-lo
na mesa, mas não menos curioso é vê-lo nas horas que precedem às seções gastronômicas. Entra
em uma casa ou por costume ou per
accidens, o que aqui quer dizer intenção formada com todas as circunstâncias agravantes da
premeditação, e superioridade das
armas. Mas suponhamos que vai a uma casa por costume.
Ei-lo que entra, riso
nos lábios, chapéu na mão, o vácuo no estômago. O dono da
casa, a quem já fatiga aquela visita diária, saúda-o constrangido e com um riso amarelo. Mas
isso não é decepção; tão pouco não desarma um bravo daquela ordem. Senta-se e
começa a
relatar notícias do dia, entremeadas de algumas da própria lavra, e curiosas — a
atrair a feição vacilante do hóspede. Daqui um criado que vem dar o
sinal de combate. É o alvo a que visava o alarme, e ei-lo que vai imediatamente pagar-se de
uma tarefa de almanaque, tão custosamente exercida.
Se porém ele entra per accidens, não é menos curiosa a cena. Começa por um pretexto
que deve lisonjear as pessoas da casa conforme os seus
fracos. Assim, se há aí um autor dramático, o pretexto é dar um parabéns sobre a última
peça representada dias antes. Sobre este molde, tudo o mais.
Se às vezes não há
um pretexto sério, não trepida ainda o parasita; há sempre um de lado, como substantivo: saber da saúde do amigo.
Mas, entra ele;
dado o pretexto, senta-se e começa a desenrolar toda a retórica que pode inspirar um
estômago vazio, um Jeremias interno.
Segue-se depois, pouco mais ou menos, a mesma cena. No fim está sempre como orla de horizonte uma mesa
mais ou menos apetitosa, onde a reação se opera largamente.
Há, porém, pequenas desgraças, acidentes inesperados na vida do parasita da mesa.
Entra ele em uma casa onde
espera almoçar folgado; — faz as primeiras saudações e vai corar a pílula ao seu caro
hóspede. Um certo
ranger de dentes, porém, começa a agitá-lo, um ranger particular que indica um estado mais calmo aos estômagos
da casa.
— Então como vai? Sinto que chegasse agora; se mais
cedo viesse, almoçava comigo.
O parasita fica de cara à
banda; mas não há remédio; é necessário sair
com decência e não dar a entender o fim que o levou ali.
Estas eventualidades, estas pequenas
misérias, longe de serem decepções, são como o cheiro da pólvora inimiga para os soldados, um incentivo na
ação. É uma índole miserável a desse corpo leviano em que só há animalidade e estômago; mas,
entretanto, é necessário aceitar essas criaturas tais como são — para aceitarmos a
sociedade tal como ela é. A sociedade não é um grupo de que uma parte devora a outra? Eterno antagonismo das
condições humanas.
O parasita da mesa uniformiza o exterior
com a importância do hóspede; um cargo elevado pede uma luva de pelica, e uma
botina de
polimento. À mesa não há ninguém mais atencioso; — e como um conviva alegre, aduba os guisados
com punhados de sal mais ou menos saborosos.
É uma retribuição razoável — dar de comer ao espírito de quem dá de comer ao corpo.
Aqui não há
desaire, há uma troca recíproca que prova que o parasita tem suscetibilidades em alto
grau.
Estes
traços, mais ou menos exatos, mais ou menos distintos, dão aqui uma pequena
idéia do parasita da mesa; mas esta variedade do tipo é absorvida por outras de uma
importância mais alta. Aqui é o parasita do corpo, os outros são os do espírito e da
consciência; — aqui são os epicuristas à custa alheia, os outros são as
nulidades intelectuais que se agarram à primeira tela de propriedades suculentas que lhe vai ao
encontro.
São imperceptíveis
talvez estes lineamentos — e acusam a aceleração do pincel; passemos às outras
variedades do tipo onde achamos formas mais amplas e proeminências mais
distintas.
II
O
PARASITA
O
parasita literário tem os mesmos traços psicológicos do outro parasita, mas não
deixa de ter uma afinidade latente com o fanqueiro literário. A única diferença está nos
fins, de que se afastam léguas; aquele é porventura mais casto e não tem mira no resultado
pecuniário,
— que, parece, inspirou o fanqueiro. Justiça seja feita.
A imprensa é a mesa do parasita
literário; senta-se a ela com toda a sem-cerimônia; come e distribui pratos com o sangue
frio mais alemão
deste mundo — diante da paciência pública — que vacila sobre os seus eixos. Um amigo meu define perfeitamente este curioso animal; chama-o Vieirinha da literatura. Vieirinha, lembro ao leitor, é
aquele personagem que todos têm visto em um drama nosso.
De
feito, este parasita é um Vieirinha sem tirar nem pôr; cortesão das letras,
cerca-as de cuidados, sem alcançar o menor favor das musas.
Segue-as por toda a parte, mas
sem poder tocá-las. Só não sobe ao monte sagrado, porque é uma excursão difícil, e só dada
a pés mais de
ferro, e a vontades mais sérias. Ali, ficam eles nas fraldas, soltando uma orquestra de gemidos, até que o
velho cavalo os vem despedir com uma
amabilidade de pata sofrivelmente acerba.
Um coice é sempre uma resposta
às suas súplicas... Represália no
caso.
Eterna lei das compensações!
Entre nós o
parasita literário é uma individualidade que se encontra a cada
canto. É fácil verificá-lo. Pegais em um jornal; o que vedes de mais saliente? uma fila de
parasitas que deitam sobre aquela mesa intelectual um chuveiro de prosa ou
verso, sem dizer — água vai!
Verificai-o!
O jornal aqui não é propriedade, nem da
redação nem do público, mas do parasita. Tem também o livro, mas o jornal é mais
fácil de contê-los.
Às vezes o parasita associa-se e cria um jornal próprio.
Aqui é que não há de escapar-lhe.
Um jornal todo entregue ao parasita,
isto é, um campo vasto todo entregue ao disparate! É o rei Sancho
na sua ilha!
Ele pode parodiar o dito histórico l’état c'est moi! porque as quatro ou seis páginas, na verdade, são dele, todas dele. Ele pode gritar ali, ninguém lho impedirá, ninguém; uma vez que não ofenda a moral pública. A polícia pára onde começa o intelectual e o senso comum; não são crimes no código as ofensas a esses dois elementos da sociedade constituída.
Ora, sustentado assim pelos poderes, o
parasita literário invade, como o Huno moderno, a Roma da intelectualidade, com
a decência moral nos lábios, mas sem a decência intelectual.
Tem pois o jornal, próprio ou não
próprio, onde pode sacudir-se a gosto, garantido pelas leis. Se desdenha o
jornal tem ainda o livro.
O livro!
Tem ainda o livro, sim. Meia dúzia de folhas
de papel dobradas, encadernadas, e numeradas é um livro; todos têm direito a
esta operação simples, e o parasita por conseguinte.
Abrir esse livro e compulsá-lo,
é que é heróico e digno de pasmo. O que há por aí, santo Deus! Se é um volume de versos,
temos nada menos que uma coleção de pensamentos e de notas arranhadas laboriosamente em
harpas selvagens como um tamoio. Se é prosa — temos um amontoado de frases descabeladas entre si, segundo a opinião do autor. É muitas vezes um drama, um romance
misterioso, de que o leitor não
entende pitada. Se eu quisesse ferir individualidades, tocar em suscetibilidades, desenrolaria aqui um sudário dessas invasões na literatura; mas o meu fim é o
individuo, e não um indivíduo.
O parasita literário vai ainda aos teatros. Esta
invenção de recitar nos teatros, tirada da
antiguidade grega, que levanta um bardo em um festim, como nos mostra a Odisséia, abriu um precedente, e deu azo ao abuso. A autoridade, que é
ainda a polícia, não indaga do mérito
da obra, e quer apenas saber se há alguma coisa que fira a moral. Se
não, pode invadir a paciência pública.
Todos os leitores estão de posse deste traço do
parasita literário. As salas dos nossos teatros têm repercutido imensas
vezes com esses arranhamentos
de lira. Basta bater palmas de um camarote e ter alguns
exemplares para distribuição; a platéia deve receber aquele aguaceiro
intelectual.
O parasita está
debaixo do código.
Ora, o que admira
no meio de tudo isto, é que sendo o parasita literário o vampiro
da paciência humana, e o primeiro inimigo nacional, acha leitores, — que digo?
adeptos, simpatias, aplausos!
Há quem lhes faça crer que alguma coisa
lhes rumina na cabeça como a André Chénier; eles, a quem já não faltava vontade
de crer, aceitam,
como princípio evidente, essa solução do impossível, que a parvoíce lhe dá de boa vontade.
Que gente!
Os tragos fisiológicos do
parasita são especiais e característicos. Não podendo imitar os grandes homens pelo talento, copiam na
postura e nas maneiras o que acham pelas gravuras e fotografias. Assumem um certo ar pedantesco,
tomam um timbre dogmático nas palavras; e, ao contrário do fanqueiro, que tem
a espinha dorsal mole e flexível, — ele não se curva nem se torce; a vaidade é o seu espartilho.
Mas, por compensação, há a modéstia nas
palavras ou certo abatimento, que faz lembrar esse ninguém elogiado da
comedia. Mas ainda assim vem a afetação; o parasita é o primeiro que esta cônscio de que é alguma coisa, apesar da sinceridade
com que procura pôr-se abaixo de zero.
Pobre gente!
Podiam ser homens de bem, fazer alguma
coisa para a sociedade, honrar a musa nacional, contendo-se na sua esfera própria;
mas nada,
saem uma noite da sua nulidade e vão por aí matando a ferro frio...
É que têm o evangelho diante dos
olhos...
Bem-aventurados os pobres de espírito.
O parasita ramifica-se e enrosca-se
ainda por todas as vértebras da sociedade. Entra na Igreja, na política e na
diplomacia; há laivos dele
por toda a parte.
Na Igreja, sob o pretexto do
dogma, estabelece a especulação contra a piedade dos incautos, e das turbas. Transforma o
altar em balcão e a âmbula
A história é uma
larga tela dessas torpezas cometidas à sombra do culto.
O parasita da Igreja, toda a Idade
Média o viu, transformado em papa vendeu as absolvições, mercadejou as concessões,
lavrou as bulas. Mediante
o ouro, aplanou as dificuldades do matrimônio quando existiam; depois levantou
a abstinência alimentar, quando o crente lhe dava em troca uma bolsa.
É um
desmoronamento social. O parasita teve uma famosa idéia em embrenhar-se pela Igreja. A dignidade sacerdotal
é uma capa magnífica para a estupidez, que toma
o altar como um canal de absorver ouro e regalias.
Assim colocado no
centro da sociedade, desmoraliza a Igreja, polui a fé, rasga as
crenças do povo. Entra, todos o consentem, no centro das famílias, sem
haver sacudido o pó das torpezas que lhe nodoa as sandálias. Dominou imoralmente as
massas, os espíritos fracos, as consciências virgens.
Esta transformação do parasita não tende por ora a desaparecer; a fogueira de J. Huss não queimou só o grande apóstolo, devorou também o vestíbulo desse edifício de miséria levantado por uma turba de parasitas, parasita da fé, da moralidade e do futuro.
Em política,
galga, não sei como, as escadas do poder, tomando uma opinião ao grado das
circunstâncias, deixando-a ao paladar das situações, como uma verdadeira
maromba de arlequim. Entra no parlamento com a fronte levantada, votado pela
fraude, e escolhido pelo escândalo.
Exíguo de luz
intelectual, — toma lá o seu assento e trata de palpar para apoiar
as maiorias. Não pensa mal: quem a boa árvore se encosta...
Alguns sobem
assim; e todos os povos têm sentido mais ou menos o peso do domínio desses boêmios de
ontem.
Deixá-los subir às mesas supremas do
festim público. Mas tenham cuidado na solidez das cadeiras em que se sentarem.
Na diplomacia, é
mais fácil o ingresso ao parasita. Encarta-se aí em qualquer legação
ou embaixada, e vai saltitar em Paris ou
Podia, se não temesse fatigar, fazer uma
enumeração mais longa das famílias de parasitas que irradiam destas espécies
cardeais. Seria, entretanto, uma longa história que demandaria mais largo
espaço; e não caberia nestas ligeiras aquarelas.
O parasita é tão antigo, creio
eu, como o mundo, ou pelo menos quase.
Em economia
política é um elemento para estacionar o enriquecimento social; consumidor que
não produz, e que faz exatamente a
mesma figura que um zangão na república das abelhas.
Extinguir o parasita não é uma operação de dias,
mas um trabalho de séculos. Os meios não os
darei aqui. Reproduzo, não moralizo.
III
O
EMPREGADO PÚBLICO APOSENTADO
Os Egípcios
inventaram a múmia para conservarem o cadáver através dos
séculos. Assim a matéria não desapareceria na morte; triunfava dela, do que temos alguns
exemplos ainda.
Mas não existiu só
lá esse fato. O empregado público não se aniquila de todo na aposentadoria; vai
além, sob uma forma curiosa, antediluviana, indefinível; o que chamamos
empregado público aposentado.
Espelho à rebours, só reflete o passado, e por ele chora como uma criança. É a elegia
viva do que foi, salgueiro do carrancismo, carpideira dos velhos sistemas.
Reforma, é uma palavra que não se diz diante do empregado público aposentado. Há lá nada mais revoltante do que reformar o que está feito? abolir o método! desmoronar a ordem!
Atado assim ao poste do carrancismo,
eterno lábaro do que é moderno, o empregado público aposentado é um dos mais
curiosos tipos da sociedade. Representa o lado cômico das forças retroativas
que equilibram os avanços da civilização nos povos.
É o tipo que hoje trago à minha tela.
São variáveis o caráter e a feição desta individualidade, mas eu procurarei dar-lhe
os traços mais finos,
os mais vivos.
Conceber um aposentado sem caixa de rapé é conceber o sol sem luz, o oceano sem água. Uma pertence ao outro, como a alma pertence ao corpo; são inseparáveis. E têm razão! O que vale uma caixa de rapé, não o compreende qualquer profano. É o adubo oportuno de uma conversa árida e suada sobre qualquer reforma de governo. É o meio de conhecimento com um potentado de quem se espera alguma coisa. É a caixa de Pandora. É tudo, quase tudo.
E não parece.
Aquele utensílio tão mesquinho, em um outro qualquer, está circunscrito na estreita
esfera do nariz; nas mãos do aposentado, transforma-se; em vez de se transformar o
depósito de um vício, torna-se o instrumento de certos fatos políticos
que muitas vezes
parecem nascer de causas mais altas.
Este prestígio do
empregado público aposentado não pára só na caixa,
estende-se por todos os acessórios daquele curioso indivíduo. Na gravata, na
presilha, na bengala, há certo ar, uma nuança especial, que não está ao alcance
de qualquer. Ou natureza, ou estudo, a aposentadoria traz ao empregado público esses dotes, como um
presente de núpcias.
Ora, apesar deste metódico das formas, não estão limitadas aí as vistas do aposentado. Há naquele cérebro alguma finura para se não entregar exclusivamente a essas ninharias. E a política? A política lá o espera; lá o espera o governo; lá o espera o teatro, as modas, os jornais, tudo o espera.
Não é maledicente, mas gosta de cortar o
seu pouco sobre as coisas do país. Não é um vício, é uma virtude cívica: o
patriotismo.
O governo, não importa a sua cor
política, é sempre o bode expiatório das doutrinas retrógradas do empregado público
aposentado. Tudo quanto tende ao desequilíbrio das velhas usanças é um crime para esse viúvo da secretária,
arqueólogo dos costumes, antiga vítima do ponto, que não compreende que haja nada além das
raias de uma existência
oficial.
Todos os progressos do país estão ainda
debaixo da língua fulminante deste cometa social. Estradas de ferro! é uma
loucura do modernismo! Pois não bastavam os meios clássicos de transporte que até aqui punham em comunicação localidades afastadas?
Estradas de ferro?
Desta
sorte todas as instituições que respiram revolução na ordem estabelecida das coisas — podem contar com um
contra do empregado público
aposentado. Este meio mesmo de retratar
à pena, como faço atualmente,
revoltaria o .espírito tradicional da grande múmia do passado. Uma inovação de mau gosto, dirá
ele. É verdade; não representa apenas a superfície da epiderme, vai às
camadas mais íntimas da matéria organizada.
O
empregado público aposentado poderá deixar de comer, mas lá perder um jornal, lá perder um jubileu político ou sessão do parlamento, é tarefa que
não lhe está nas forças.
O jornal é lido, analisado com toda a finura de espírito
de que ele é capaz. Devora-o todo, anúncios e leilões; e se não vai ao folhetim, é porque o folhetim é frutinha do nosso tempo.
No
parlamento, é um espectador sério e atencioso. Com a cabeça enterrada nas paredes mestras de uma gravata
colossal ouve com toda a atenção, até os menores apartes, vê os pequenos
movimentos, como profundo investigador das coisas políticas.
Ao
sair dali, o primeiro amigo que encontra tem de levar um aguaceiro de palavras
e invectivas contra a marcha dos negócios mais interessantes do país.
De ordinário o aposentado é compadre
ou amigo dos ministros, apesar das invectivas, e
então ninguém recheia as pastas de mais memoriais e pedidos. Emprega os
parentes e os camaradas, quando os emprega, depois de uma longa enfiada de
rogativas importunas.
É sempre assim!
No
sarau o empregado público aposentado é pouco cortês com as damas; vai procurar emoções nas alternativas de um
lindo baralho de cartas. Mas para não faltar ao programa, lá vi tachando
de imoral aquele divertimento que tanto dinheiro absorve; fica-lhe a
consciência.
Onde poderemos encontrar ainda o aposentado? Ele vai por
toda a parte onde é lícito rir e discutir sem ofensa
pública.
O leitor conhece decerto a individualidade de que lhe
falo, é muito vulgar entre nós, e de
qualidades tão especiais que a denunciam entre mil cabeças. Que lhe acha? Quanto a mim é inofensiva como um
cordeiro. Deixem-no mirar-se no espelho dos velhos usos, falar em
política, discutir os governos; não faz mal.
Em uma comédia do nosso teatro, há uma reprodução deste
tipo, o Sr. Custódio do Verso e
Reverso. Mirem-se ali, e verão que, apesar do estreito círculo em que se move, faz pálidos e
mirrados estes ligeiros e mal distintos
lineamentos.
IV
O FOLHETINISTA
Uma das plantas européias que dificilmente se têm
aclimatado entre nós, é o folhetinista.
Se é defeito de suas propriedades orgânicas, ou da
incompatibilidade do clima,
não o sei eu. Enuncio apenas a verdade.
Entretanto,
eu disse — dificilmente — o que supõe algum caso de aclimatação séria. O que não estiver contido nesta
exceção, vê já o leitor que nasceu enfezado, e mesquinho de
formas.
O
folhetinista é originário da França, onde nasceu, e onde vive a seu gosto, como em cama no inverno. De lá
espalhou-se pelo mundo, ou pelo menos por onde maiores proporções tomava o
grande veículo do espírito moderno; falo do jornal.
Espalhado pelo mundo, o folhetinista tratou de acomodar a
economia vital de sua organização às conveniências das atmosferas locais.
Se o têm conseguido por toda a parte, não é meu fim estudá-lo; cinjo-me ao
nosso círculo apenas.
Mas
comecemos por definir a nova entidade literária.
O
folhetim, disse eu em outra parte, e debaixo de outro pseudônimo, o folhetim nasceu do jornal, o folhetinista
por conseqüência do jornalista. Esta íntima afinidade é que desenha as
saliências fisionômicas na moderna criação.
O
folhetinista é a fusão admirável do útil e do fútil, o parto curioso e singular
do sério, consorciado com o frívolo. Estes dois elementos, arredados como
pólos, heterogêneos como água e fogo, casam-se perfeitamente na organização do
novo animal.
Efeito estranho é este, assim produzido pela afinidade
assinalada entre o jornalista e o folhetinista. Daquele cai
sobre este a luz séria e vigorosa, a
reflexão calma, a observação profunda. Pelo que toca ao devaneio, à leviandade,
está tudo encarnado no folhetinista mesmo; o capital próprio.
O
folhetinista, na sociedade, ocupa o lugar de colibri na esfera vegetal; salta, esvoaça, brinca, tremula, paira e
espaneja-se sobre todos os caules suculentos, sobre todas as seivas
vigorosas. Todo o mundo lhe pertence; até mesmo a política.
Assim aquinhoado pode dizer-se que não há entidade mais
feliz neste mundo, exceções feitas. Tem a sociedade
diante de sua pena, o público para lê-lo, os ociosos para admirá-lo, e a bas-bleus para aplaudi-lo.
Todos o amam, todos e admiram, porque todos têm interesse
de estar de bem com esse arauto
amável que levanta nas lojas do jornal a
sua aclamação de hebdomadário.
Entretanto, apesar dessa atenção pública, apesar de todas
as vantagens de sua posição, nem todos
os dias são tecidos de ouro para os folhetinistas. Há-os
negros, com fios de bronze; à testa deles está o dia... adivinhem? o dia de
escrever!
Não
parece? pois é verdade puríssima. Passam-se séculos nas horas que o
folhetinista gasta à mesa a construir a sua obra.
Não é nada, é o cálculo e o dever que vêm pedir da
abstração e da liberdade — um folhetim! Ora, quando há matéria e o espírito está disposto, a coisa passa-se bem. Mas quando, à falta
de assunto se une aquela morbidez moral, que se pode
definir por um amor ao far niente, então
é um suplício...
Um suplício,
sim.
Os olhos negros que saboreiam essas páginas coruscantes
de lirismo e de imagens, mal sabem às vezes o que custa escrevê-las.
Para
alguns não procede este argumento; porque para alguns há provimento de matéria,
certos livros a explorar, certos colegas a empobrecer...
Esta
espécie é uma aberração do verdadeiro folhetinista; exceções desmoralizadoras
que nodoam as reputações legítimas.
Escritas,
porém, as suas tiras de convenção, a primeira hora depois é consagrada ao
prazer de desforrar-se de uma maçada que passou. Naquela noite é fácil
encontrá-lo no primeiro teatro ou baile aparecido.
A
túnica de Néssus caiu-lhe dos ombros por sete dias.
Como
quase todas as coisas deste mundo o folhetinista degenera também. Algumas das entidades que possuem essa
capa, esquecem-se de que o folhetim é
um confeito literário sem horizontes vastos, para fazer dele um canal de
incenso às reputações firmadas, e invectivas às vocações em flor, e
aspirações bem cabidas.
Constituindo assim cardeal-diabo da cúria
literária, é inútil dizer que o bom senso e a razão friamente o condenam e
votam ao ostracismo moral, ausência de
aplausos e de apoio.
Não é este o único abuso que se dá. É costume de outros
levantarem o folhetim como a chave
de todos os corações, como a foice de todas as reputações
indeléveis.
E
conseguem...
Na
apreciação do folhetinista pelo lado local temo talvez cair em desagrado negando a afirmativa. Confesso apenas
exceções. Em geral o folhetinista aqui é todo parisiense; torce-se a um
estilo estranho, e esquece-se, nas suas
divagações sobre o boulevard e café Tortoni, de que está sobre um mac-adam lamacento e com
uma grossa tenda lírica no meio de um deserto.
Alguns vão até Paris estudar a parte fisiológica dos
colegas de lá; é inútil dizer que
degeneraram no físico como no moral.
Força
é dizê-lo: a cor nacional, em raríssimas exceções, tem tomado o folhetinista entre nós. Escrever folhetim e ficar
brasileiro é na verdade difícil.
Entretanto,
como todas as dificuldades se aplanam, ele podia bem tomar mais cor local, mais feição americana. Faria assim menos mal à independência do espírito nacional, tão preso a
essas imitações, a esses arremedos, a esse suicídio de originalidade e
iniciativa.